terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Bruxa.



A garota recebeu um forte chute na cabeça do guarda que passava, abrindo-lhe mais um corte enquanto o frio metal da bota fazia seu caminho através do rosto da pobre mulher. Ela sentiu o olho arder conforme o sangue escorria até seu olho e impedia sua visão, misturando seu mundo em dor, medo, raiva, ratos enormes e sangue. Muito sangue. 
O guarda sorriu quando viu o resultado de seu movimento e se abaixou para ficar ao nível da franzina garota. Com sua mão truculenta ele levantou o rosto frágil e marcado por inúmeras cicatrizes, de torturas dos interrogatórios e das surras dos guardas. Analisou suas feições desesperadas por alguns segundos, sentindo uma estranha pena se espalhar por seu interior e se perguntando se o que fazia era certo. Então cuspiu na órbita vazia onde antes estivera o outro olho da jovem. É claro que ele estava fazendo o certo. Ela era uma maldita bruxa e merecia sofrer por tudo que representava e por todas as pessoas inocentes que morriam de tanto trabalhar, indo para cama com fome à noite, enquanto ela apenas estalava os dedos para conseguir comida. Era injusto. Era nojento. Ela era nojenta.
A mulher segurou suas lágrimas uma vez mais, feliz por saber que em breve tudo estaria acabado. Em breve ela seria levada para a fogueira e poderia abandonar esse mundo de preconceitos, torturadores, guardas com botas de ferro e um povo ignorante, preconceituoso e invejoso. Sim. Em breve ela estaria livre.
O guarda se assustou com o estranho sorriso que se espalhou pelo rosto da bruxa maldita, de corpo tão franzino e inofensivo, uma aparência tão delicada, outrora doce – mas com suas belas feições agora desfiguradas pelas pinças e tições da igreja – e ao mesmo tempo tão absurdamente perigosa para as pessoas normais. E ficou feliz por ela ir para a fogueira em breve, para poder acabar com tudo isso. Então lhe deu um soco na boca, estalando-lhe o maxilar e fazendo-a cuspir os últimos dentes que ainda tinha. O sorriso realmente o perturbava.
Jogada pra trás pela força surpreendente do golpe, a jovem se encolheu em uma bola no canto da cela e deixou finalmente as lágrimas fluírem. Era surpreendente que ainda fosse capaz de chorar, depois de tudo que lhe fizeram. Apenas mais um soco não deveria significar nada para ela. Mas a maldade, o preconceito e a ignorância com que aquele golpe estava carregado foram demais para uma única mulher aguentar. Ela se perguntava como sua família pôde aguentar tudo isso. E chorava mais, desesperada por sua família e por saber que todos eles estavam mortos por sua causa. Mas tentou se acalmar com a ideia de que logo tudo estaria acabado. Uma última viagem. Uma última dor. E então alcançaria a liberdade. 
O homem cuspiu-lhe uma última vez, de longe, e resolveu sair da cela – os outros soldados logo viriam leva-la para a fogueira e seu merecido fim. Então sentiu outra vez aquela pequena pontada de culpa e dúvida – será que estava fazendo o certo? Será que essa pobre e mirrada jovem era mesmo tão perigosa? Ela mal parecia capaz de levantar os braços sem ajuda. Agitou a cabeça para se livrar dos pensamentos e se afastou rapidamente. Já estava pensando como um herege, se continuasse assim logo seria ele mesmo mandado à fogueira. Amaldiçoou a bruxa e sua magia e andou até sumir na escuridão.
As horas passaram. E passaram. E passaram. Então se tornaram dias. E os dias continuaram passando. E nada da fogueira. Nada da liberdade. A jovem amaldiçoou o escuro e desejou que isso acabasse logo. Depois de tanto sofrimento e tortura, os padres ainda queriam ver seu definhamento demorado de fome e sede? Isso era tão cruel e injusto.
Depois de ter perdido a conta dos dias desde que recebera a última visita, o guarda da bota de ferro, a garota percebeu que não havia mais nada pelo que esperar. Os guardas não viriam, a fogueira nunca apareceria e as chamas libertadoras nunca a consumiriam. Este era seu fim. Então decidiu abandonar suas últimas esperanças e acabar logo com tudo aquilo. Arrastou-se lentamente, um movimento doloroso de cada vez, evitando forçar o braço quebrado, sentindo a estranha leveza do coto onde antes estivera sua perna. Então um sorriso quase irônico lhe veio aos lábios. Tudo era estranho nesses dias. Finalmente conseguiu alcançar a parede, quase desmaiada de dor, e se preparou para seu suspiro final. Levantou lentamente sua cabeça, milímetro por milímetro e se preparou para soltá-la e deixar o frio impacto da pedra acabar com sua miserável vida.
Os passos duros e metálicos reverberavam altos pelo corredor escuro, mandando ondas de som através das pedras frias e constantemente molhadas. A tocha era fraca e quase não era suficiente para ver 5 palmos a frente, a escuridão daquele lugar parecia sentir fome e um prazer perverso em cercar as pessoas. Quando chegou perto da sela e próximo ao guarda que vigiava a suposta bruxa o homem parou e tirou suas botas, para não alertá-lo de sua aproximação. Também se livrou da tocha, já que uma luz era tão gritante naquela escuridão. Com a adaga em punho ele se aproximou sorrateiramente, respirando fraco e pisando leve, até chegar ao lado do seu antigo amigo. Com um olhar triste e carregado de lembranças felizes, o homem cortou a garganta do outro e sentiu o sangue quente e pegajoso escorrer por seu braço, entrando em sua manga e deslizando por seu torso, enquanto a vida do outro deixava o corpo em uma última respiração assustada. 
Ele preferiria ter convencido seu antigo companheiro de infância, mas sabia que nunca conseguiria – eles pensavam de modo muito diferente, além de só ele ter visto o estado deprimente em que a garota estava. Então um barulho estranho veio da cela – um baque úmido e sólido – e o antigo guarda temeu estar atrasado. Com as mãos tremendo de ansiosidade, o arrombador colocou a chave na fechadura e a girou, apenas para encarar uma escuridão silenciosa e angustiante. Rapidamente pegou a tocha que estava na mão sem vida do carcereiro de sua amada e iluminou o interior da cela. Prendeu a respiração com o que viu. Um corpo molestado e destruído, torturado até o limite da criatividade humana, obrigado a declarar algo falso, apenas para a satisfação da vaidade dos malditos inquisidores. E então ele falhou. Chegou tarde demais. A garota finalmente cedeu e se matou. Depois de tanto lutar e se esforçar, depois de mostrar tanto desafio ela finalmente se rendeu para a escuridão maldosa ao seu redor e escolheu o único caminho que parecia lhe restar. Uma morte rápida e limpa. 
Mas ele não a deixaria assim. Pelo menos seu corpo – ou o que restou dele – ele salvaria. Correu até o canto distante da cela e aninhou o belo e pequeno corpo em seu braço – ela estava tão maltratada que um braço era suficiente para carrega-la. 
Ele corria pelo corredor, tentando fazer o mínimo de barulho possível, evitando guardas sempre que podia e matando-os traiçoeiramente quando não podia. Ele sabia que tinha de correr. Em alguns minutos os corpos seriam encontrados e a fuga notada. Nunca fora bom lutador, chegara ao posto de guarda das prisões por sorte e sabia que não galgaria mais nenhuma posição. Ele não tinha nada a perder, exceto talvez o pobre corpo seguro em seu braço.
Após cinco minutos e o terceiro corpo abandonado com a garganta aberta e o sangue jorrando de suas veias, enquanto o coração ainda não percebia que deveria parar de funcionar, enquanto o corpo lutava com todas as forças contra a morte, mesmo que a alma já houvesse desistido e se esvaído, o alarme tocou, gritando para todos que pudessem ouvir que uma fuga acontecia e todas as saídas da prisão deveriam ser seladas. A última esperança do fugitivo era chegar ao fim do corredor antes de as pesadas portas se fecharem, deixando-o preso dentro da terrível escuridão, tendo as pedras, um corpo totalmente desfigurado e sua loucura estúpida como companhia. 
Abandonando completamente a cautela, ele correu a toda velocidade, esbarrando em guardas assustados e derrubando-os para fora do caminho, enquanto refreava arquejos da dor e agonia extrema que lhe subiam pelos pés, sendo enviados das lâminas posicionadas no chão e impossíveis de serem evitadas e se amaldiçoou por ser obrigado a deixar suas botas para trás. Então, finalmente, inesperadamente, esperançosamente a luz do dia surgiu a sua frente. Eles iriam conseguir. Ele salvaria sua senhora. Eles conseguiriam escap- uma única flecha mortal, disparada com precisão quase sobre-humana acertou-lhe exatamente entre os olhos, atravessando sua cabeça e derramando pedaços do cérebro ao seu redor.

- Por Apolo Blans Lima 

Ps: Apolo é um amigo meu, e vocês devem ter percebido que ele escreve divinamente, e como não tem paciência pra atualizar páginas e publicar seus textos, ele pediu a mim para publicar aqui alguns dele. Devem ter percebido que o estilo dele é um pouco menos delicado que o meu, mas ainda assim fantástico, concordemos. Enfim, é isto. Textos do Apolo pelo menos uma vez por semana. 
Ps.2: Sim, Apolito se inspirou com meu texto da bruxa, etc. 
Beijos.
Larissa Cruz.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cinzas de uma inocência.



Ela estava no canto do calabouço úmido, os cabelos longos embaraçados e sujos, o vestido rasgado e em péssimo estado, sua pele marcada por lesões profundas e sua alma por lesões mais profundas ainda. Acusada de bruxa, sentenciada e julgada por isso, no entanto não poderia operar qualquer truque mágico ou surpreendente. Era uma simples camponesa, com o dom de ter flashes do futuro. Dom, que acreditava ela, Deus lhe tinha dado por ser merecedora, porém todos diziam que quem morava nela não era o Senhor, e sim o maligno.
Engoliu em seco, e sua garganta arranhou em protesto, pois estava muita seca. Ela se moveu na escuridão, as pedras frias do chão do calabouço lhe servindo de apoio enquanto se arrastava até as grossas barras de ferro, por onde gritou:
- Água, água!
Uma voz grave do guarda veio do corredor, num tom zombeteiro:
- Crie água da pedra, bruxa! Onde está teu poder agora?
Ela começou a chorar, em desespero.
- Não sou bruxa! Sou inocente! Deus sabe que nunca fiz nada de maligno!
- A Inquisição lhe julgou culpada, e é assim que deve ser. Se tu, mulher, for inocente, Deus Nosso Senhor não permitirá que o fogo lhe queime. Agora faça silêncio, herege, e espere pela fogueira!
Chorando desesperada, segurou nas barras com força. Seu destino era a fogueira em algumas horas, quem sabe minutos. Respirou fundo e pediu a Deus forças, então voltou a ficar quieta na escuridão, o ar pesado e difícil das profundezas da prisão a faziam sentir-se tonta e mais perturbada ainda.
Algumas horas se passaram, e logo os guardas abriram a cela e arrastaram a garota pelas correntes e pelos cabelos. Quando saíram do calabouço e a luz pôde enfim tocar a bruxa, ela se tornou visível à multidão que ali esperava para ver o castigo de uma pagã.
A garota de longos cabelos loiros e aparência frágil pareceria inofensiva se a ela não coubesse o título de bruxa, algo inaceitável na idade média, algo que só teria dois caminhos: morte ou morte pós tortura. Ela foi arrastada até um mastro de madeira que estava no centro da praça pública, cercado de madeira e palha. Um frio tomou conta do estômago da bruxa, e seus pés perderam as forças, fazendo-a ser quase carregada até o mastro, com violência.
Todos a observavam atentamente: o vestido simples e sujo, com algumas manchas de sangue devido a alguns machucados pelo corpo, as marcas visíveis de tortura, o rosto pálido e os olhos cor de mel completamente assustados.
A bruxa foi amarrada no mastro com força, fazendo-a ficar impossibilitada de mover qualquer parte do corpo, e ela chorava e gritava, dizendo que era inocente, para terem piedade. O padre se aproximou, fez uma oração em latim e jogou água benta, pedindo que todos os pecados dos quais ela tiver sido acusada fossem arrependidos e seu corpo purificado pelo fogo.
As tochas foram acesas, e a garota gritava mais em desespero, a multidão vibrava por “justiça divina” enquanto observavam o fogo se espalhar ao redor da bruxa.
Ela gritava e chorava, e os incentivos da multidão a machucavam mais que as próprias chamas. O calor foi aumentando e o fogo se aproximando, começando a consumi-la. Aos berros, sentiu o fogo tocá-la e queimá-la, a dor era insuportável. Sentia que estava no inferno sendo inocente. Num instinto, fechou os olhos e visualizou o futuro certo: Ela completamente incendiada, tida como bruxa. Apenas uma entre tantas inocentes, apenas uma vítima da ignorância de um período da história.
Os berros cessaram, e antes que o fogo a consumisse por inteira, ela abriu os olhos e uma lágrima desceu por sua face pálida e coberta de cinzas. A vidente condenada como bruxa, a bruxa tida como uma possessão demoníaca, o sábio que falou demais ou ensinou demais, alguém que pensou mais que devia, todos consumidos pela morte.
O fogo tomou conta de todo corpo e alma da garota, restando no final da fogueira às cinzas de uma inocência.