sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cinzas de uma inocência.



Ela estava no canto do calabouço úmido, os cabelos longos embaraçados e sujos, o vestido rasgado e em péssimo estado, sua pele marcada por lesões profundas e sua alma por lesões mais profundas ainda. Acusada de bruxa, sentenciada e julgada por isso, no entanto não poderia operar qualquer truque mágico ou surpreendente. Era uma simples camponesa, com o dom de ter flashes do futuro. Dom, que acreditava ela, Deus lhe tinha dado por ser merecedora, porém todos diziam que quem morava nela não era o Senhor, e sim o maligno.
Engoliu em seco, e sua garganta arranhou em protesto, pois estava muita seca. Ela se moveu na escuridão, as pedras frias do chão do calabouço lhe servindo de apoio enquanto se arrastava até as grossas barras de ferro, por onde gritou:
- Água, água!
Uma voz grave do guarda veio do corredor, num tom zombeteiro:
- Crie água da pedra, bruxa! Onde está teu poder agora?
Ela começou a chorar, em desespero.
- Não sou bruxa! Sou inocente! Deus sabe que nunca fiz nada de maligno!
- A Inquisição lhe julgou culpada, e é assim que deve ser. Se tu, mulher, for inocente, Deus Nosso Senhor não permitirá que o fogo lhe queime. Agora faça silêncio, herege, e espere pela fogueira!
Chorando desesperada, segurou nas barras com força. Seu destino era a fogueira em algumas horas, quem sabe minutos. Respirou fundo e pediu a Deus forças, então voltou a ficar quieta na escuridão, o ar pesado e difícil das profundezas da prisão a faziam sentir-se tonta e mais perturbada ainda.
Algumas horas se passaram, e logo os guardas abriram a cela e arrastaram a garota pelas correntes e pelos cabelos. Quando saíram do calabouço e a luz pôde enfim tocar a bruxa, ela se tornou visível à multidão que ali esperava para ver o castigo de uma pagã.
A garota de longos cabelos loiros e aparência frágil pareceria inofensiva se a ela não coubesse o título de bruxa, algo inaceitável na idade média, algo que só teria dois caminhos: morte ou morte pós tortura. Ela foi arrastada até um mastro de madeira que estava no centro da praça pública, cercado de madeira e palha. Um frio tomou conta do estômago da bruxa, e seus pés perderam as forças, fazendo-a ser quase carregada até o mastro, com violência.
Todos a observavam atentamente: o vestido simples e sujo, com algumas manchas de sangue devido a alguns machucados pelo corpo, as marcas visíveis de tortura, o rosto pálido e os olhos cor de mel completamente assustados.
A bruxa foi amarrada no mastro com força, fazendo-a ficar impossibilitada de mover qualquer parte do corpo, e ela chorava e gritava, dizendo que era inocente, para terem piedade. O padre se aproximou, fez uma oração em latim e jogou água benta, pedindo que todos os pecados dos quais ela tiver sido acusada fossem arrependidos e seu corpo purificado pelo fogo.
As tochas foram acesas, e a garota gritava mais em desespero, a multidão vibrava por “justiça divina” enquanto observavam o fogo se espalhar ao redor da bruxa.
Ela gritava e chorava, e os incentivos da multidão a machucavam mais que as próprias chamas. O calor foi aumentando e o fogo se aproximando, começando a consumi-la. Aos berros, sentiu o fogo tocá-la e queimá-la, a dor era insuportável. Sentia que estava no inferno sendo inocente. Num instinto, fechou os olhos e visualizou o futuro certo: Ela completamente incendiada, tida como bruxa. Apenas uma entre tantas inocentes, apenas uma vítima da ignorância de um período da história.
Os berros cessaram, e antes que o fogo a consumisse por inteira, ela abriu os olhos e uma lágrima desceu por sua face pálida e coberta de cinzas. A vidente condenada como bruxa, a bruxa tida como uma possessão demoníaca, o sábio que falou demais ou ensinou demais, alguém que pensou mais que devia, todos consumidos pela morte.
O fogo tomou conta de todo corpo e alma da garota, restando no final da fogueira às cinzas de uma inocência. 

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